Diria Kant que tempo e o espaço são inatos aos seres humanos. Para Bergson, o tempo tem como essência a pura duração, subjetiva e intrinsecamente ligada à consciência. Elias diria que o tempo opera sob materializações, símbolos e objetificações. Já em Marx, o tempo e o espaço são formas de demonstrar como a matéria está em movimento.
Mais uma vez, me debruço sobre esses teóricos, mas não me ergo em seus ombros – como faria Newton – uma vez que meu objetivo não é ver além. Meu mero desejo é de, mais uma vez, demonstrar o quanto estamos, cada dia mais, operando e remando contra questionamentos “inquestionáveis”. O processo que se desencadeou a partir do Impeachment, e que aflorou uma nova horda de revisionistas em Outubro do ano passado coloca a nós – futuros, passados e presentes historiadores – em pé de ilegalidade. Quais são os efeitos do bolsonarismo infundado e bêbado em suas abstrações e negações do óbvio? Essa é uma pergunta que, como diria Olavo, “não encontra refutação de um experimento”, apesar de não estarmos tratando de terra planismo. É simplesmente tratar de quem morre de frio vestindo a roupa roída do Rei da Barra da Tijuca, sem saber que está seminu. Ou melhor, de quem não liga pra isso. Ou mesmo dar nome aos ratos.
O cemitério da História tem lugar nessas idas e vindas de negar e impedir a rememoração de seus processos nefastos. E não pensem que essa disposição é recente, afinal, somos o povo que acredita na figura de Isabel como libertadora dos escravos e que não preza por memória e justiça. O processo que encontramos nessa vasta e complexa Republiqueta de milicianos nada mais é do que a expressão máxima de um povo que não faz ideia do que a História Pública e de como suas vias não são alteráveis.
É nessa confusão, nesse conflito sem síntese que as garras do bolsonarismo se prendem. Um povo sem memória não só é um povo sem História, mas um povo que nega o tempo presente.
Em um encontro recente com o ex-senador Chico Alencar, me surpreendi com a leitura que fez de um antigo poema de Drummond, que como sempre, é mais atual do que nunca. Assim diz “Mãos Dadas˜, de 1940:
Não serei o poeta de um mundo caduco
Também não cantarei o mundo futuro
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a enorme realidade
O presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente
Não pensemos aqui que Drummond previa a nefasta guinada da classe à qual pertencia ao revisionismo infundado. Mas, sua obra é um alerta. Um alerta de como a História, a poesia e a arte também podem ser reescritas. E sob a ótica do poeta do novo verde-amarelismo, lemos:
Serei o poeta de um mundo caduco
Cantarei e ditarei o mundo futuro
Estou preso à vida e olho meus seguidores
Estão ávidos e nutrem falsas esperanças
Entre eles, considero a falsa realidade
O presente é tão curto, não nos unimos
Não nos unimos muito, vamos de mãos atadas
Serei o cantor de uma mulher impeachmada, de um História dos de cima
Direi os gritos ao amanhecer, a paisagem vista da porta dos fundos
Distribuirei armas e cartas de renúncia
Fugirei para Brasília e serei raptado pelas cobras
O tempo não é minha matéria, o tempo não está presente, somente os homens
A vida não se faz presente
O aviso é claro mas silencioso: a caravanas passa, os cães ladram, a Terra é Plana, a História é mutável e somos todos inimigos de um bem maior. Na terra do Rei de Roma, a Barra da Tijuca nada mais é que a porta dos fundos dos porões da História.